(...)
Precisamos deixar de ser surdos aos gritos do povo nas esquinas ou no campo. Compreender o que dizem as crianças pedindo esmolas na esquina, driblando carros, no horário que deveriam estar na escola. Dentro de nossos carros, passamos por essas crianças tão insensível quanto uma pessoa surda ao lado de alguém aos gritos. Não ouvimos e não entendemos a fome, a insegurança e o medo frente às ameaças da rua, da noite, do dia seguinte, do futuro imprevisível. Não escutamos o grito que mostra o triste futuro de uma nação impassível frente às necessidades de suas crianças.
Não tomamos conhecimento dos berros de quase 2 milhões de crianças brasileiras em idade escolar que nem sequer entraram na escola, ou de milhões de outras crianças que serão matriculadas mais para fugir da fome comendo merenda do que para sair da ignorância aprendendo letras. Não percebemos que o futuro do país está gritando, nossa surdez matando o destino de todo país.
Somos todos portadores de uma triste e profunda deficiência auditiva diante das necessidades dos pobres. Passamos por corpos dormindo nas calcadas sem ouvir a injustiça que eles gritam. Somos incapazes perceber a fome daqueles corpos na imobilidade das noites de frio, o desespero da falta de uma casa, a falta de perspectiva. Não vemos o desperdício de futuro por falta de investimento nas pessoas. Não reagimos ante os gritos assustadores das pessoas que chegam aos hospitais sem leitos para parentes doentes.
Somos surdos para mães e pais barrados nas portas dos hospitais, com os filhos nos braços, sabendo que atrás da porta há condições de salvar-lhes a vida.
Não ouvimos o estômago dos que não têm o que comer. Porque somos surdos para os problemas da pobreza.
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(Cristovam Buarque. Jornal do comercio, opinião, 26/08/2005). Adaptado.
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